(Crítica à Proposta Curricular para o Ensino de Geografia Elaborada pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo 2008)
“O objetivo central dos que lutam contra a sociedade mercantil,
a alienação e a intolerância é a emancipação humana”
(Istvan Mészários – A Educação para além do capital).
O ponto de partida para a análise da proposta curricular no que tange a disciplina de geografia, elaborada pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo no ano de 2008, toma como referência a escola e a educação descritas na mesma. Em primeiro lugar a proposta ignora totalmente a realidade na qual estão inseridas nossas escolas, a grande maioria delas imersas nas periferias urbanas do Estado de São Paulo, desaparelhadas e com gigantescos problemas de infra-estrutura física e pedagógica, fruto do descaso dos sucessivos governos do PSDB, que a própria Secretária da Educação apontou em entrevistas recentes a diversos órgãos da grande imprensa e que por motivos óbvios recusou-se a responsabilizá-los. Numa atitude diferente apressou-se em jogar sobre os ombros dos professores os sucessivos fracassos educacionais dos alunos detectados pelas diversas avaliações institucionais, esquecendo-se de que os mesmos, em que pese os limites dessas avaliações externas, são o resultado de quase treze anos da desastrosa política educacional tucana.
Uma proposta curricular deveria levar em consideração a escola, os professores, os alunos, os funcionários e toda a comunidade escolar. Nesse sentido é sempre importante dizer que os teóricos da proposta na qualidade de atores vinculados aos gabinetes da Secretaria de Educação ou dos meios acadêmicos universitários, ou desconhecem o dia a dia da rede, ou deliberadamente para atender as políticas governamentais de inspiração mercadológica pretendem enquadrar os profissionais que atuam na educação básica aos propósitos mercantis, sem contudo, resolver o problema central da educação hoje, diga-se de passagem de difícil solução, que é proporcionar aprendizagem de fato a toda uma geração de alunos mal formados e semi analfabetos.
A imensa maioria dos professores da educação básica em São Paulo, em virtude dos sucessivos anos de salários arrochados e sem perspectiva de progressão na carreira do magistério, posto que praticamente inexiste plano de carreira nessa rede pública desde 1997, teve que optar por trabalhar em uma segunda rede municipal, particular ou mesmo estadual, para manter o mínimo de condições de sobrevivência. Nessa realidade muitos trabalham das 7 às 23 horas por dia, tendo que andar mais de 20 quilômetros entre uma escola e outra, não dispondo de tempo de preparar aula, ou de analisar os diversos instrumentos avaliativos o que só é possível nos finais de semana. Por atuar em ambientes escolares hostis: salas superlotadas, mobiliários inadequados, condições estruturais depredadas, o seu grau de stress é elevadíssimo, o que leva milhares de professores a serem obrigados a trabalharem doentes, ou se submeterem ao humor dos peritos do departamento médico para que possam conseguir licença médica, o que atualmente é praticamente impossível, dado que este segmento do funcionalismo tem sido perseguido pelo “SNI” do governo Serra. É uma categoria extremamente pauperizada em decorrência de décadas de arrocho salarial.
É importante lembrar também que o resultado da política governamental a partir da década de 1990 que teve como base central a elevação das taxas de desemprego, quer pela abertura indiscriminada do mercado, quer pela privatização desenfreada, desestruturou milhões de famílias nos país, deixando toda uma geração de jovens sem referências familiares, sem perspectiva de emprego e sem alternativa de acesso a cultura e ao laser. Nesse contexto muitos vêem a escola como mais um espaço de sociabilização, suscetível a todo tipo de atividade, inclusive as ilícitas. Nesse contexto têm aumentado os casos de violência contra professores e alunos em praticamente todas as regiões do Estado de São Paulo.
Uma segunda incoerência do embasamento da referida proposta curricular, deixa latente a falta de conexão entre a teoria elaborada e a realidade, no subitem “Prioridade para a competência da leitura e escrita”, destacamos o texto abaixo:
“A ampliação das capacidades de representação, comunicação e expressão está articulada ao domínio não apenas da língua mas de todas as outras linguagens e, principalmente, ao repertório cultural de cada indivíduo e de seu grupo social, que a elas dá sentido. A escola é o espaço em que ocorre a transmissão, entre as gerações, do ativo cultural da humanidade, seja artístico e literário, histórico e social, seja científico e tecnológico. Em cada uma dessas áreas, as linguagens são essenciais”.
De fato o nosso grande desafio é despertar nos nossos alunos o gosto pela leitura, o que só é possível a partir da criação do hábito de ler sendo que o primeiro passo é propiciar a eles o acesso aos livros. “Ler, escrever e falar em público é tarefa ontológica, intrínseca, eterna da escola, de todos nós educadores.”¹ Muito bem, aqui começa o primeiro grande obstáculo para todos nós educadores. Recentemente a Subsede da APEOESP de São Bernardo do Campo fez um levantamento com os REs das escolas da nossa região, onde constatamos que em mais de 70% das escolas não existe biblioteca funcionando. O que é chamado de biblioteca é uma sala fechada cheia de livros. As escolas não têm bibliotecários. Sem gente para organizar e controlar, o acervo já limitado é entregue à responsabilidade de traças, aranhas e outros insetos. Desta forma o “Estado mínimo” reforça sua contribuição para aumentar o contingente de não leitores.
Com referência a proposta da geografia em si, analisamos o seu embasamento a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais aprovados na segunda metade da década de 1990, quando para desviar o foco dos verdadeiros problemas educacionais, os formuladores (técnicos do MEC) difundiram a visão de que bastava a adoção de modificações didáticas na prática docente para melhorar a educação. Sobre o seu caráter Kaercher no artigo: “PCN´S: FUTEBOLISTAS E PADRES SE ENCONTRAM NUM BRASIL QUE NÃO CONHECEMOS” in Dossiê os PCNs em Discussão, Revista da AGB, 1997, p. 33, escreveu: “Os PCN´s, portanto, são, a meu ver, mais um belo texto que ficará inócuo nas prateleiras no que diz respeito a suas boas intenções. Agora, quanto as intenções mais escondidas, qual seja, padronizar e controlar a pequena autonomia dos professores, estas serão atingidas pois o professorado não está apropriado desta questão e terá, como alternativa, a simples reprodução de um documento que ele não entendeu (ou sequer leu). Aliada a uma inevitável padronização do livro didático – provável corolário dos PCN´s – teremos uma escola única tratando como iguais pessoas socialmente muito diferentes. Será sem dúvida, um instrumento poderoso das autoridades federais no controle do professor. Quem não seguir os parâmetros estará ´fugindo de suas obrigações´e será tido como profissional ´rebelde´. Essa homogeinização, ainda que travestida de um discurso progressista, ´de esquerda´ tem características autoritárias bem claras”.
Após mais de dez anos da sua aplicabilidade, os resultados que temos é uma geração de adolescentes e jovens excluídos da escola ou semi-analfabetos. A insistência de que basta apenas promover modificações didáticas sem tocar nas condições estruturais das escolas e sem melhorar as condições de salário e de trabalho dos docentes, levou ao extremismo de secundarizar ou em alguns casos desprezar o papel dos conteúdos disciplinares: uma espécie de “pedagogicídio”, qual seja, o papel da escola é desenvolver “competências” e “habilidades” nos alunos. A simples transposição de uma teoria importada da Europa, desfocada da realidade brasileira. Um discurso pretensamente avançado mais que tem no seu âmago a instrumentalização servindo aos propósitos de uma política educacional conectada com os interesses do enxugamento da máquina estatal. Esse projeto agora ganhou os contornos da verticalização, homogeinização, sendo elaborado sem a participação dos seus executores os professores num ato extremamente anti-democrático: um profundo ataque contra a o direito à liberdade de cátedra dos docentes.
Finalmente os eixos estruturadores da proposta em si: território, paisagem, lugar e educação cartográfica, bem como os objetivos esperados dos alunos, são apresentados a partir de enfoque cultural, ao qual as demais categorias estão subordinadas. Nessa concepção os alunos devem adquirir uma consciência do mundo para agir no mesmo positivamente, como o que está prescrito no último dos objetivos esperados:
“Utilizar os conhecimentos geográficos para agir de forma ética e solidária, promovendo a consciência ambiental e o
respeito à igualdade e diversidade entre todos os povos, todas as culturas e todos os indivíduos”.
Ao introduzir o estudo da geografia a partir dos ritmos e ciclos da natureza e ao subordinar a espacialidade às relações culturais a partir da aparência dos fenômenos, desconsidera-se que o espaço é produto das relações estabelecidas pelas classes sociais, o que em escala planetária dinamiza-se por aquilo que Milton Santos definiu como dinâmica da globalização: “transformar todo mundo em consumidor, usuário e, se possível em coisa, para mais facilmente se inclinar diante de soluções anti-humanas” (Milton Santos – Folha de São Paulo 14/10/96).
A proposta curricular da Secretaria se insere no rol de políticas desse governo conectadas com uma concepção educacional autoritária que pretende transformar professores em meros executores de suas propostas e os alunos em números que devem ser enquadrados em parâmetros mínimos para melhorar as estatísticas servindo aos seus propósitos que é atingir “qualidade” até mesmo de forma maquiada para ser utilizada para fins políticos.
Os professores devem resistir contra este projeto político diversificando suas aulas no sentido de conscientizar nossos alunos de que a melhoria da escola é o objetivo central da nossa luta e que a mesma tem como eixo central o combate aos ataques que o governo impõe à escola pública, inclusive pretendendo privatizá-la, o que já está ocorrendo de forma sutil através de programas de parcerias para cursos profissionalizantes. Nossa luta vai continuar.
Paulo Neves
Secretário de Assuntos Educacionais da APEOESP
Professor de Geografia da rede pública estadual
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¹ KAERCHER, Nestor André. Ler e escrever a geografia para dizer a sua palavra e construir o seu espaço. In Ler e Escrever compromisso
de todas as áreas. Iara Bitencourt Neves e outros organizadores, 5ª e.d. UFRGS Editora.2003.